Era quarta-feira de cinzas. Estava sentado na frente da pequena sala onde aplicava injeções na emergência do Hospital Getúlio Vargas. Corredor lotado. Macas enfileiradas dos dois lados. Só dava para uma maca ou cadeira de rodas passar pelo meio, e o que passava de bombeiros chegando e maqueiros voltando era impressionante. Emergência lotada em hospital público não é novidade. Mas, durante Carnaval parece cenário de filme de guerra.
Meu amigo Tavares, um morador de rua, estava no hospital devido a uma
“brincadeira” de outro “amigo”. O “amigão” dele achou engraçado dar
algumas latas de cana para Tavares e depois jogá-lo no chão em cima de
uma planta venenosa. Até hoje não descobri o nome daquela planta, mas, o
que ela fez com o braço de Tavares era de espantar. Parecia queimadura
de terceiro grau. Além de uma fratura no braço, ele também sofria com a
pele ardendo e corria sério risco de infecção.
Lá estavamos, sentados em cadeiras de plástico, aguardando as injeções
antitetânico, de um antibiótico e do analgésico que Tavares precisava
para aguentar a dor. Ainda alimentamos uma pequena esperança de
conseguir uma maca para ele, pois Tavares teria que passar alguns dias
naquele corredor.
Enquanto aguardávamos, eu olhei as paredes da sala. Estavam todas
enfeitadas com detalhes de decoração de Carnaval – serpentinas em fita
de papel, buzinas, balões e chapéus de isopor, e as tradicionais
máscaras de todos os tipos. Tudo com cores berrantes. Parecia uma
alegria só.
Fiquei olhando para a decoração festeira e para os homens, mulheres e
crianças imprensados nas cadeiras e enfileirados nas macas no corredor.
Quanta festa! Quanta alegria! Quanta dor! Quanta tragédia!
É claro que nem todas as dezenas de pessoas sendo atendidas na
emergência estavam lá em decorrência do Carnaval. Mas, nos dias que
sucederam, conversando com um e outro, descobri que vários estavam lá,
sim, justamente como consequência dos acidentes, das bebedeiras, das
brigas e agressões, enfim, das “brincadeiras” da grande festa do rei
Momo.
Sabia que o “rei Momo”, personagem da mitologia grega, era filho do sono
e da noite, e, de acordo com a lenda, foi expulso do Olimpo por
ridicularizar os outros deuses? Imagine como o verdadeiro Deus se sente
nos dias do nosso Carnaval.
Sabia que a palavra Carnaval vem do latim “carne levare” que significa
“abstenção de carne”? A expressão originalmente se referia à tradição da
igreja Católica instituida no século XI da Quaresma, um período de 40
dias de privações que se iniciava na Quarta-feira de Cinzas e terminava
na Páscoa. Uma idéia interessante, certamente com boas intenções.
Entretanto, a chegada do período de privações acabou incentivando a
entrega aos prazeres da carne no período que antecedia esses dias de
abstenção. Logo começou a nascer o espírito do nosso “Carnaval”.
Enquanto olhei os enfeites bonitos e alegres nas paredes da emergência,
não podia deixar de ser comovido pelo contraste com os corpos agredidos,
abusados e quebrados ao meu redor. Não havia lugar para se sentar. Um
homem tentava dormir numa cadeira. Mãe e filha encolhidas em outra. Só
dava para imaginar o que havia sucedido. Um senhor de idade vagava de
sala em sala buscando uma pessoa para autorizar um raio-x.
Conversei com os parentes de um jovem que sofreu um derrame. Veio de
outro estado brincar Carnaval aqui. E acabou em trajédia, paralisado em
cima de uma maca. O irmão, perplexo, só olhava para o espaço. Ele
aceitou, grato, uma folha com um salmo. Não tenho a coragem em lugares
assim de “pregar”. Alguns tem. Eu não tenho. Só consigo fazer uma
pergunta ou outra para compreender um pouco melhor o que estão passando.
Escuto. Oro. Compartilho um salmo. É o que precisam.
Fiquei olhando as máscaras na parede. O que talvez para alguns era um
adereço alegre para mim parecia algo sinistro. Comecei a pensar, por que
máscaras? Para que encobrir? Ocultar o que? O que se tem a ganhar com
isso? Quem tem a ganhar com isso? Aí, me lembrei de quem encobre,
esconde e finalmente engana. É o pai de tudo isso. É a arte, a profissão
dele.
Carnaval. É uma alegria só. Não é verdade? É o grande momento dos adultos “brincarem”. Sim, claro.
Só não entendo por que os bancos de sangue tem que fazer tantos apelos
nas semanas que antecedem Carnaval. Não faz sentido para mim por que o
estado tem que mobilizar tanto policial nesses dias tão alegres. É um
mistério por que as emergências ficam lotadas e o movimento no IML se
torna tão intenso num momento tão festeiro. Nunca entendi porque aquela
minha amiga que é obstetra diz que daqui a nove meses vai nascer tanto
bebê nas maternidades públicas, e estranhamente de tantas mães
solteiras. Estranho. Não dá para entender. Deve ser coincidência.
Carnaval é uma alegria só, não é? Vai se juntar? Vai se divertir? Vai brincar?
A escolha é sua. Mas, se for, não esqueça sua máscara.
A escolha é sua. Mas, se for, não esqueça sua máscara.
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